segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Ponto de Partida - Música e Poesia vencendo fuzis e canhões

O que proponho agora é um mergulho na História recente do Brasil.

História Viva, cujas páginas finais do atual capítulo ainda estão sendo escritas diante dos nossos olhos, e inclusive com nossa participação.

O post é longo e detalhado. Leia numa hora calma, e ouça também as músicas.


Ajuda a entender um pouco mais sobre o que é o Brasil atualmente


Leia e entenda porque

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Ponto de Partida - O Bêbado e a Equilibrista

No Natal de 1977, morre Charles Chaplin, ator e diretor de Cinema e Teatro e também compositor. Uma de suas músicas mais conhecidas é “Smile”.

A singela e sentimental melodia de “Smile” é como se fosse composta por “Carlitos”, o eterno personagem de Chaplin : Uma música que incentiva a sorrir e a sonhar, mesmo que a vida seja triste e difícil. 

A canção "Smile" foi o Ponto de Partida pra composição de uma das músicas mais emblemáticas da História do Brasil

Já em 1978, impressionado com a morte de Chaplin, João Bosco compõe uma melodia “homenageando” Smile; e mostra a seu parceiro de letra, Aldir Blanc.

João Bosco e Aldir Blanc sempre foram da ala dos “artistas engajados” nas causas sociais e políticas, assim como Charles Chaplin também era.

 O Brasil vivia sob a violenta repressão da Ditadura Militar. Muitos torturados, muitos assasinatos, muitos desaparecidos e mais de 10 mil exilados políticos. 

Na época, um dos “assuntos do momento” era o “suicídio” forjado nos porões do DOPS, de um dos mais importantes jornalistas do País : Vladimir Herzog.

Falava-se também da morte do operário Manoel Fiel Filho, assasinado pelo simples fato de estar carregando um exemplar do Jornal do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, na época já presidido por Lula.

Nessa mesma época, o cartunista Henfil, amigo de João Bosco e Aldir Blanc, nas rodas de conversas políticas; falava sem parar de seu irmão, o sociólogo Betinho, que tinha idéias brilhantes para implantar no país, mas perseguido pelos militares, se refugiou no México e nos EUA.

Eram vários os artistas que usavam a música, o teatro, o cinema, para protestar e incentivar a sociedade a sonhar e lutar pela volta de Liberdade e da Democracia.

Nesse “caldo cultural e político”, João Bosco e Aldir Blanc fizeram uma das músicas mais emblemáticas da História do Brasil : O Bêbado e a Equilibrista.

A letra parece confusa, mas explica-se : Durante a Ditadura Militar, havia implacável censura, que proibia a execução de músicas, cancelava shows, e até apreendia discos que contivessem “conteúdo subversivo”.

Cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque frequentemente eram proibidos de tocar nas rádios e TVs. Foram exilados,

Acuados pela censura, era comum que os artistas na época, passassem suas mensagens políticas através de “códigos”, ou linguagem simbólica.

Essa é a razão de “O Bêbado e a Equilibrista” ter uma linguagem tão “apocalíptica”, cheia de símbolos.

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O cartunista Henfil, criou em suas charges um “Cemitério dos Mortos-Vivos”, onde “enterrava” personalidades que tinham grande popularidade, mas que não usavam seu prestígio para mostrar ao povo que era preciso lutar pela liberdade no Brasil

Henfil “enterrou” Pelé, Roberto Carlos, Sílvio Santos, e vários outros, que considerava ser “instrumentos de alienação política”

Um belo dia, Henfil “enterrou” Elis Regina, por que ela havia ido cantar num evento do Exército. O Exército obrigou Elis a cancelar um show para ir cantar no evento militar.

Elis ficou furiosa com Henfil, mas entendeu a mensagem, e “ressucitou” em grande estilo : Elis gravou para o Fantástico, a música “O Bêbado e a Equilibrista” até então inédita.
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Foi um petardo contra a Ditadura. 

Rádios e TVs na época, davam muito mais espaço pra músicas mais elaboradas, do que dão hoje. O povo era acostumado a ouvir musicas mais complexas.

Assim que a música tocou no Fantástico, em 1979, caiu nas graças dos artistas, e do povo em geral. Bombou nas rádios, que passaram a ignorar e desobedecer a Censura.

Passou a ser usada nas passeatas, protestos, e se tornou o “Hino da Luta pela Anistia Política”

O poder mobilizador foi gigantesco. Pressionado, o Governo Militar adiantou a “abertura política” e o General-presidente Figueiredo promulgou no mesmo ano de 1979, a Lei da Anistia.

Os exilados políticos voltaram em massa. Os presos políticos também foram anistiados.

Poesias, romances, contos e músicas podem vencer os fuzis e canhões.

 Essa música marcou uma geração, marcou o início do fim da luta do povo brasileiro pela volta da Democracia

Vale a pena entender cada uma dessas “simbologias” contidas nessa letra complicada:

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O Bêbado = Os artistas, músicos, escritores, poetas, os “loucos” que ousavam levantar a voz contra a Ditadura .  

A Equilibrista = a Liberdade


Caía a tarde = Expressões como “Cair a tarde”, ou “noite”, ou “trevas” nas músicas da época sempre se referiam à Ditadura

Feito um viaduto = Uma referencia à queda Viaduto Paulo de Frontin no Rio,  e a queda do Centro de Exposições da Gameleira em BH. Nas 2 ocasiões, centenas de trabalhadores morreram, e fora das cidades onde ocorreram, ninguém mais soube, pois o Governo Militar, empenhado em fazer o “Brasil grande”, escondia acidentes e desastres da opinião pública

E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos = Se referindo aos artistas, tristes e oprimidos pela repressão, mas mesmo pobres e desamparados, assim como Carlitos não perdiam o sorriso e a esperança. Ao mencionar Carlitos, homenageiam Chaplin

A Lua = Representava os políticos civis como Sarney, ACM, Maluf, Delfim Neto; entre vários que apoiavam o Governo Militar com intuito de tirar vantagens pessoais com a aproximação desse poder. Por sua postura dúbia e conivente, eram apelidados pelos militantes de esquerda, de “luas-pretas”

Tal qual a dona de um Bordel = Os políticos civis eram os “donos” do grande "bordel" de sempre, na política : O Congresso Nacional, Câmara e Senado, retratados como bordel desde a História Antiga

Pedia a cada estrela fria, um brilho de aluguel = Os políticos civis (Lua) donos do “bordel” não tinham brilho próprio, poder. 

O seu brilho era alugado pelos donos do poder : Os Generais. 
Eles eram retratados como”estrelas” em referencia às suas patentes militares, , mas “estrelas frias” por que seu “brilho”, seu poder, não era legítimo

E nuvens lá no mata-borrão do céu, chupavam manchas torturadas = Essa expressão se refere diretamente à tortura de presos políticos.

Mata –borrão é um instrumento antiquado de eliminar erros e manchas na escrita de caneta tinteiro. Nesse caso, representa o DOPS, e o DOI-CODI, o “Mata-borrão” que visava “eliminar” os erros ideológicos, os subversivos através da tortura e de assassinatos.

As “nuvens e o céu” representam os inatingíveis, e inalcançáveis torturadores e os porões do DOPS que “chupavam manchas torturadas”, ou seja; “corrigiam” os erros da sociedade.

Hoje sabemos que uma das “manchas torturadas”  se tornou a primeira mulher a ser Presidente da República : Dilma Rousseff

Que sufoco ! = a expressão é auto explicativa

Louco, o bêbado com chapéu – coco fazia irreverências mil na noite do Brasil = Se refere aos artistas “loucos”, sonhadores como Carlitos e seu chapéu-coco; que teimavam em fazer irreverências á Ditadura (noite do Brasil )

Meu Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil = Referência ao sociólogo Betinho, irmão do cartunista Henfil, que era exilado político. Henfil através de suas charges, fazia criticas pesadas e ácidas à Ditadura. 

Com tanta gente que partiu num rabo de foguete = Referencia aos demais exilados políticos. Gente como Brizola, Fernando Henrique, Miguel Arraes, Chico Buarque, Gilberto Gil, Fernando Gabeira, José Dirceu

Chora a nossa pátria mãe gentil, choram Marias e Clarices no solo do Brasil = Referência à tristeza e a saudade que o Brasil sentia de filhos ilustres. Ao todo, eram 10 mil exilados políticos,

Maria era o nome da viúva de Manoel Fiel Filho, operário; a Clarice era a viúva de Vladimir Herzog, jornalista; ambos assassinados no DOPS. 

Nessa música, “Marias e Clarices” representavam as mães, esposas e famílias de pessoas mortas ou desaparecidas nos porões da Ditadura, fatos que ainda continuam vivos na discussão política, páginas ainda não viradas na História do Brasil 

Mas sei que uma dor assim pungente, não há de ser inutilmente = Era a certeza de que a luta que travavam valeria a pena

A esperança dança na corda bamba, de sombrinha; e em cada passo dessa linha pode se machucar = A esperança era algo frágil, e poderia se esvair num instante. O Governo Militar já falava em Abertura Política “lenta, segura e gradual”; mas todos sabiam que a qualquer momento tudo poderia voltar à estaca zero

Azar! A esperança Equilibrista sabe que o show de todo artista, tem que continuar = Os artistas sinalizavam que continuariam cantando e lutando pela liberdade. 

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Embalados por essa música, Fernando Henrique, José Dirceu, Fernando Gabeira, Brizola, Miguel Arraes, Betinho e mais 10 mil exilados políticos voltaram ao Brasil

Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Elis Regina, Beth Carvalho e muitos outros pararam de ter músicas vetadas nas rádios

Aloysio Nunes, Dilma Rousseff, José Aníbal, Lula e muitos outros, foram anistiados pelos “crimes de subversão”

Em 1985 a Ditadura Militar chegou ao fim, e a Democracia voltou de vez, inclusive com uma nova Constituição.

Hoje, graças à Liberdade de Expressão, esses fatos são amplamente estudados e abordados na Mídia Brasileira.


A primeira vez que ouvi a explicação sobre os significados da canção "O Bêbado e a Equilibrista", foi em 1988, numa aula de Literatura, no Colégio Salesiano, em BH.


No documentário "Irmãos de sangue" os irmãos hemofílicos Betinho, Henfil e Chico Mário; contam sobre a composição dessa música.


A Minissérie "Queridos Amigos" da Rede Globo em 2009, relembrando os 30 anos da Anistia; também abordou a história dessa música e da volta dos exilados políticos


Há também entrevistas dos próprios autores, João Bosco e Aldir Blanc, esmiuçando esses detalhes.

Há inúmeros livros, revistas, sites e blogs que também esmiuçam essa canção.


É a História do Brasil não contada nos livros escolares. Vista apenas pelos que se interessam em ver "dentro da música".

Música, Livros, Poesias podem vencer fuzis e canhões. 

Alguém duvida ?
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Aí está João Bosco, 30 anos depois de compor, emocionando a platéia que chora enquanto canta uma das canções mais importantes da História do Brasil
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